1 - INFORMAÇOES PRESTADAS
Foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n° 5.003-B, de 2001, que altera a Lei n° 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, dá nova redação a dispositivos do Código Penal o § 3° do art. 140 (Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940) - Código Penal, e ao art. 5 e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo (Decreto-Lei n° 5.452, de 1° de maio de 1943) e dá outra providência.
Recebido pelo Senado Federal. o Projeto de Lei n° 5.003-B, de 2001, passou a ser designado por PLC nº 00122/2006, encontrando-se atualmente na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, já com Parecer Favorável da Senadora Relatora e pronto para inclusão na pauta da Comissão.
Inconformados com o Projeto de Lei em questão, entidades religiosas e/ou suas assessorias de fundamentos religiosos, vêm se manifestando contrárias à pretendida normatização e sustentam em síntese apertada, a indeterminação das terminologias adotadas no tipo penal, as dificuldades de eventuais interpretações, a ausência de proporcionalidade da pena e a confrontação da garantia constitucional do direito à opinião.
2 - QUESTÃO
A avaliação técnica jurídica do PLC nº 00122/2006 frente às críticas indicadas.
3 - PRELIMINARES A SEREM EXAMINADAS
Ab initio, há que se ressaltar o conhecimento das críticas das entidades religiosas que, valendo-se de respeitáveis operadores de direito, insurgem-se contra a necessária intervenção do Estado que busca normatizar uma injusta situação discriminatória há muito existente. Lastimáveis nesses casos são que argumentos da técnica criminal tenham sido utilizados e grosseiramente deturpados, em nome da defesa de valores pessoais e religiosos em desmerecimento à inteligência dos legisladores.
Em que pese a discussão democrática, sempre necessária, tal postura de flagrante distorção, só faz comprovar o quão é imprescindível o projeto de lei em questão e o quanto o mesmo se faz imperioso.
Para iniciar tais considerações e demonstrar a manifesta diferença entre tais pronunciamentos é que não há aqui qualquer intenção de desmerecer o direito constitucional da garantia à liberdade religiosa. Portanto, constata-se situação dispare, enquanto a maioria das críticas ao PLC 122/2006 é fundada, explícita ou implicitamente, por juristas comprometidos com as instituições ou dogmas religiosos, a presente defesa à normatização criminal em tela não tem por mira qualquer desmerecimento àquela, como, aliás, não teve tal intenção o legislador pátrio ao elaborá-la.
Logo, por premissa, todas as inúmeras críticas já públicas das instituições religiosas são manifestamente parciais e tendenciosas, visando mais a justificar a repulsa à normatização legal que se pretende (como já ocorreu em época do advento da lei do divórcio), ao invés, como quer parecer crer, em nome de uma boa técnica criminal.
No entanto, não se foge do debate e em particular a algumas críticas que têm sobressaído: terminologias adotadas no tipo penal, as dificuldades de eventuais interpretações, a proporcionalidade da pena e a garantia constitucional do direito à opinião.
4 - AS TERMINOLOGIAS ADOTADAS NO TIPO PENAL E AS PRETENSAS DIFICULDADES DE EVENTUAIS INTERPRETAÇÕES
A crítica constante tem sido acerca da terminologia “gênero” ou “identidade de gênero”.
O rigor lógico do emprego exato da palavra não pode ceder à mera alegação da ignorância de seu conhecimento. Como notoriamente sabido, a regra geral de interpretação é que a norma penal deve ser interpretada de forma restritiva, não admitindo interpretação extensiva, por conseguinte, somente se não constasse expressamente no tipo penal a figura do gênero e da identidade de gênero é que seriam pertinentes tais críticas, diante das sérias conseqüências decorrentes de tal omissão.
Ora, sustentar o desconhecimento do termo é negar a própria língua pátria. Em qualquer livro de psicologia que cuide da Sexualidade Humana tais conceitos são amplamente difundidos e até mesmo, ordinariamente, em dicionários. Veja, por exemplo, na popular Wikipédia que, em qualquer site de busca é a primeira a gratuitamente a trazer a definição de tais termos na língua portuguesa. Ao legislador não cabe definir o que já é definido pela língua, que se espera ser conhecida e sobre a qual não depende de valorização pessoal, sob pena de uma revisão extensiva de todo código penal. Assim fosse, o legislador ao cuidar de normais criminais teria que em cada dispositivo conceituar as terminologias quando a cada tipo penal ele se referisse, o que evidente inocorre.
A língua portuguesa é método subsidiário indispensável à perfeita interpretação não só das leis penais, mas de todo o ordenamento jurídico. Nesse sentido, cabe trazer à colação a excelente lição de Túlio Lima Vianna professor de Direito da PUC Minas, doutor em Direito pela UFPR, mestre em Direito pela UFMG, em seu artigo “Da estrutura morfossintática dos tipos penais”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, Vol.45, Ed. Revista dos Tribunais:
“Procuramos demonstrar neste trabalho a existência de uma relação lógica bem
determinada entre institutos do Direito Penal e determinadas funções
morfossintáticas da frase típica.
Nunca foi nosso objetivo esgotar o assunto
aqui abordado. Buscamos principalmente despertar o interesse pelo estudo
interdisciplinar do Direito Penal e da Língua Portuguesa, tão negligenciado pela
doutrina pátria.
Reconhecemos os limites do processo de interpretação
gramatical das leis, mas vislumbramos nele um método subsidiário indispensável à
perfeita interpretação não só das leis penais, mas de todo o ordenamento
jurídico.
Se o uso isolado de tal método constitui anacronismo impensável na
moderna hermenêutica jurídica, negligenciá-lo como método propedêutico à
interpretação dos dispositivos legais é, sem dúvida alguma, querer compreender
um texto em língua estrangeira sem conhecer seu idioma.”
A ausência de intimidade com a palavra não impede seu conhecimento. Até mesmo o velho e conhecido “Vocabulário Jurídico” de De Plácido e Silva, obra que conta com mais de 40 anos de existência, prescinde de atualização, como de fato constantemente se faz, no auxílio dos operadores de direito. Tal atualização não se encerrará jamais, pois ao surgimento de cada lei novos vernáculos saem do adormecimento e passam ao exercício da prática forense, conforme muito bem lembrado em nota, logo no início da obra, pelos seus nobres atualizadores.
A par disto, mas ainda sobre esse tema, a doutrina criminal constata em nossas normas penais várias hipóteses que são bastante distantes das propositais exigências que agora impõem os críticos ao projeto de lei: a norma penal em branco, a norma penal aberta, (que não apresenta a descrição típica completa e exige uma atividade valorativa do Juiz. Nele, o mandamento proibitivo inobservado pelo sujeito não surge de forma clara, necessitando ser pesquisado pelo julgador no caso concreto". Seria tipo penal aberto, por exemplo, o “ato libidinoso” previsto no artigo 214 CP, no qual o legislador não conceitua o que constituiria tal conduta, além das leis penais incompletas ou imperfeitas.
A alegada dificuldade de interpretação a alguns dispositivos também não procede.
Incrível como algumas críticas à redação são inconsistentes. E para tentar confundir é escancaradamente desconsiderada a natureza jurídica do bem tutelado do próprio projeto, qual seja, a garantia do direito de igualdade e impedir a discriminação. Em outras palavras, elocubra-se acerca da redação e sequer considera-se a sua razão de ser e o que pretende coibir: a discriminação.
É exatamente assim que se dá uma das críticas à redação do artigo 4-A “Praticar o empregador ou seu preposto ato de dispensa direta ou indireta”. Chegou-se ao absurdo de que estaria se impondo uma vitaliciedade e, portanto, necessária seria a inclusão da justa causa. Ora, como doutrinariamente sabido “a mensagem da lei” é inquestionável, o que se protege é a dispensa motivada pela discriminação e pretende o direito à igualdade, portanto, o sujeito passivo da aludida dispensa iguala-se a todos os demais cidadãos, e a única ressalva é que não se permite que tal dispensa seja motivada exclusivamente pela orientação sexual de tal empregado. Portanto, este será dispensado por todas as causas que todos os demais empregados (que não são discriminados pela orientação sexual) podem vir a ser.
O bem jurídico tutelado, além de cumprir uma função sistemático-classificatória, tem uma função exegética, por que auxilia na interpretação das normas jurídico-penais.
Nesse diapasão, seguem outras críticas, que igualmente, de maneira proposital sonegam novamente a razão de ser da lei, ou seja, sua natureza jurídica (direito fundamental à igualdade e a proteção contra a discriminação), com intuito evidente de criar inúmeras dúvidas de seu alcance e finalidade, o que como já se viu é absolutamente desnecessário. Logo, verba gratia, não há que se falar em necessidade de esclarecimentos de terminologias como “demonstração de afeto”, pois a mesma demonstração de afeto que se permite é aquela ordinariamente permitida para todos os cidadãos e tudo mais que possa ser considerado obsceno, o será independente do gênero ou identidade de gênero, respondendo cada qual criminalmente pelos excessos igualmente como qualquer outro cidadão.
5 - DA PROPORCIONALIDADE DA PENA
No dizer da magistrada e mestre, Rosimeire Ventura Leite, in, “Princípio da proporcionalidade no Direito penal”, o princípio da proporcionalidade no direito penal deve estar presente em três fases distintas: a legislativa, a judicial e a executória. No presente caso nos interessa, particularmente, a fase legislativa, sobre a qual a ilustre magistrada leciona “... é necessário observar quais os bens jurídicos que efetivamente devem ser objeto da tutela penal, que ofensas podem exigir a aplicação de uma pena... O princípio da proporcionalidade se dirige ao legislador, a fim de que, no processo de tipificação de condutas delitivas, os valores constitucionais e sociais mais relevantes sejam preservados.”.
De qualquer maneira, na hipótese, torna-se absolutamente desnecessário reapreciar a proporcionalidade da pena imposta, os bens jurídicos que devem ser objeto da tutela penal e os valores constitucionais e sociais que se pretendem ver preservados.
E a razão é simples e encerra qualquer debate: A proporcionalidade da pena foi irrepreensivelmente aplicada pelo legislador pátrio, já que a aludida pena imposta cinge-se a ser idêntica às demais penas cominadas no tipo do repulsivo crime de discriminação (raça, cor, religião etc.). Não há motivo de maior ou menor relevância na discriminação da orientação sexual em relação aos demais núcleos previstos no mesmo tipo penal. A base que fundamentou a proporcionalidade daquelas penas, assim como essa, é o bem jurídico tutelado que é imposto pela própria Constituição Federal do Brasil. Aliás essa, não à toa, logo em seus primeiros dispositivos emana como princípio fundamental a garantia máxima constitucional do direito de igualdade.
Ainda assim, ressalte-se, há notícias em número cada vez maior, dando conta que os homossexuais compõem o grupo mais discriminado, mais odiado, mais vulnerável à violência gratuita e injustificada em nossa sociedade, sendo esta razão suficiente para reclamar do legislador uma pena criminal, no mínimo, idêntica às penalidades de outras discriminações já tipificadas pelo ordenamento criminal, dado o alcance social de que se reveste.
Desejar a discussão se a pena é severa ou não para o crime da discriminação apontada no PL é pretender das duas, uma: a) impor ao legislador que na lei na qual pretende repreender a discriminação, que este discrimine a pena quando se tratar de orientação sexual, tratando-a de forma diferenciada das demais previsões penais de discriminações praticadas contra a raça, religião e etc, (e aí sim, estaria ocorrendo violação ao princípio da proporcionalidade pelo legislador), ou b) desejar a modificação geral da pena já fixada no código penal para todas as hipóteses aventadas no § 3° do art. 140.
Tomando-se por base a pena pré-existente e já imposta no tipo penal que pune a discriminação (CP, art. 140), as demais penas das demais condutas típicas incluídas no PL atendem a olhos vistos a proporcionalidade exigida, revelando-se como um instrumento de equilíbrio e obtenção da justa medida entre a gravidade da lesão ao bem jurídico e a resposta do Estado, de modo que os interesses da sociedade e os direitos do autor da infração possam ser compatibilizados.
Por fim, na questão da proporcionalidade ora em foco, outra verdade se apresenta: tratando-se da criminalização que atende a um dos mais importantes princípios constitucionais, donde se extrai a própria razão fundamental de ser as coisas jurídicas, convertendo-as em verdadeiros axiomas, a eventual proteção deficiente do legislador é que estaria ferindo a proporcionalidade esperada.
Aliás, essa é a inteligência que se extrai nos dizeres de João Marcelo Torres Chinelato (procurador federal, professor do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior Cenecista (INESC) e do Centro Universitário do Distrito Federal (UniDF) in,,,, “O princípio da proporcionalidade proibindo a omissão estatal. Por uma hermenêutica comprometida com a integridade dos direitos fundamentais”: “A constatação de que a proibição de proteção deficiente compõe o princípio da proporcionalidade é fundamental para que este postulado seja compreendido com coerência: às vezes, não é pelo excesso, mas pela fragilidade da reprimenda que o Estado ofende os direitos fundamentais.”
6 - DA GARANTIA CONSTITUCIONAL AO DIREITO A LIVRE OPINIÃO
Muito se cogita do eventual cerceamento à liberdade de opinião e expressão que adviria do PLC nº 00122/2006, Em verdade, na maioria das vezes inexiste qualquer conflito entre direitos fundamentais da dignidade humana e ao direito de opinião. “Exemplo clássico é a divulgação de idéias com forte componente racista, no qual se vislumbra um conflito entre a liberdade de expressão e o principio fundamental da dignidade humana. No caso, não há colisão, visto que a liberdade de expressão não abrange a atuação tendente a causar prejuízos à ordem constitucional, fundada que é o princípio da dignidade da pessoa humana. Em outra perspectiva, admitir-se entendimento contrário, corresponde a possibilitar atuação que transborda o âmbito de proteção da liberdade de expressão”. Evidente ainda que as Religiões existentes possuam seus próprios dogmas que não se adequam necessariamente aos interesses em defesa de um “Estado Laico”, especialmente quando a questão seja a existência do divórcio e a pretensa afirmação de serem homossexuais “antinaturais”, entre outras hipóteses. Obviamente, não se pode impor ou desrespeitar a crença e os dogmas religiosos, da mesma forma que não é admissível o atentado contra a dignidade humana e o direito inquestionável de tratamento igualitário. Portanto, não é crível o receio exposto recentemente pelo Senador Marcelo Crivella em entrevista de programa de televisão ao advertir que, ao passar o PL em debate, estaria sendo violado o direito das igrejas de professarem suas crenças e opiniões, com fundamento em suas doutrinas. Opiniões e doutrinas religiosas exercidas em seara eminentemente religiosa jamais estariam em confronto com a dignidade humana. Afinal, retratar a posição originada de seus livros sagrados, destinados a ensinar aos seus seguidores, apontando, por exemplo, os homossexuais como pessoas “antinaturais” não tem por finalidade outra coisa senão professar sua doutrina e crenças, fundada na instituição convencional da família e procriação. Outra coisa seria, fora de seus cultos religiosos, apontar e chamar aquelas mesmas pessoas de imundas, doentes, lixo, destruidoras da civilização e etc., afinal aqui já não se trataria mais de mero culto e lições dogmáticas, mas da prática repudiosa de discriminação e exaltação de ódio, que vem sendo motivadora da violência incessante sofrida pelos homossexuais.
Doutrinariamente é sabido que não há hierarquia entre as diversas normas constitucionais e que o sistema jurídico é um todo harmônico, e por conseguinte, o conflito entre elas é, em tese, apenas aparente. Porém, no plano de fato, pode ocorrer sobre uma dada situação concreta uma colisão real entre direitos constitucionais. Não se trata de nenhuma aberração e tampouco novidade, sendo longamente discorridas pela doutrina constitucional suas modalidades, classificações jurídicas e soluções.
Mostra-se totalmente desnecessário discorrer sofre tal fenômeno, uma vez que constitucionalistas nacionais e estrangeiros já exauriram todas as considerações pertinentes, em regra, ressaltando que a solução perpassa pela apreciação do caso concreto, sob a análise da aplicação do princípio da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, este como elemento balizador de qualquer interpretação constitucional.
Este é o parecer.
Rio de Janeiro, 22 de maio de 2007.
Carlos Alexandre Neves Lima
OAB/RJ Nº 58.604
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