É preto no branco!
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O resumo do próprio autor faz a síntese de suas "REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO LÉSBICA":
"Neste texto o autor procura sustentar a hipótese segundo a qual as questões lésbicas, embora sob muitos aspectos se superpõem as questões femininas, tem uma especificidade que lhe é própria. A partir de uma pequena digressão histórica, o autor apresenta alguns dos elementos constitutivos da hegemonia discursiva no que diz respeito às sexualidades e ao lugar da mulher na cultura ocidental. Segundo o autor, embora não se discuta as importantes conquistas alcançadas pelos movimentos feministas em termos dos diretos das mulheres, e das questões ligadas à sexualidade, o movimento das lésbicas enfrenta uma realidade bem mais complexa e que lhes é específica em relação à sexualidade. Defende-se a hipótese segundo a qual as ligações homoafetivas femininas, diferentemente das homoafetivas masculinas, seriam duplamente atingidas pela pelo discurso social que, em muitos aspectos, continua a segregar a mulher."
Ao final do artigo, o qual recomendo a leitura na íntegra (endereço do site abaixo), conclui Paulo Ceccarelli:
"Acredito então, para voltar ao debate, que as relações lésbicas são mais susceptíveis de discriminações sociais do que as relações gays por questionarem, a céu aberto e duplamente, o lugar e mulher e da sexualidade feminina na cultura ocidental. O fantasma do orgasmo feminino separado da procriação concretizou-se tornando-se uma realidade com a visibilidade das ligações homoafetivas femininas. A meu ver, este ponto constitui um divisor entre as questões femininas em geral e a especificidade das questões lésbicas, fazendo com que as últimas mereçam uma abordagem diferenciada. Ainda que as reivindicações feministas incluam questões ligadas à sexualidade, as práticas sexuais em si - na vertente heterossexual - são poucos debatidas, pois, supõe-se, este é um assunto de alcova. Além disso, a possibilidade de reprodução estaria, pelo menos em teoria, potencialmente presente no casal heterossexual, assegurando-lhe o lugar esperado no discurso social. Esta lógica do sistema é desmascarada pelo casal de lésbicas, que reivindica uma prática sexual legítima e prazerosa independente da procriação, embora esta não esteja excluída por outras vias. Enquanto as relações lésbicas mantiveram-se “invisíveis”, elas foram toleradas. O fato de duas mulheres solteiras, que “ficaram para tia”, pois nenhum homem as quis, morarem juntas nunca causou espanto. Ao contrário, tais relacionamentos sempre foram admitidos, senão incentivados, como um arranjo no qual uma fazia companhia a outra, além de contribuírem mutuamente para as despesas, visto que o salário da mulher era, e muitas vezes ainda o é, inferior ao do homem. Muito mais raro era dois homens de uma certa idade, independentes, com um bom emprego e ganhando bem, cobiçados pelas mulheres, morarem juntos. Tal situação sempre levantou suspeitas. A “espécie em extinção” do solteirão caracterizava-se pelo homem que vivia só, pois (ainda) não encontrara a mulher ideal para casar-se. Mais uma vez, o que está em jogo nas duas situações é a sexualidade: por serem “naturalmente” menos resistente aos apelos da carne, era no mínimo suspeito o fato de dois homens morarem juntos sem a frequentação feminina. Alguma forma de sexualidade deveria haver. Quanto às mulheres, dentro do ideal que o discurso ocidental lhes reserva, era inconcebível, ou melhor, lhes era negado, qualquer apetite sexual fora do modelo tradicional.A dominação masculina em muito contribui para que as relações gays sejam “mais aceitas” pois, afinal, tratam-se de dois homens. No casal lésbico, muitas vezes, a dificuldade da relação deve-se à reprodução, no âmbito do individual e no interior do casal, da posição social da mulher. Em uma sociedade na qual o discurso sobre a sexualidade é muito mas repressivo quando se trata da sexualidade feminina, particularmente ao vinculá-la à função reprodutora da mulher, a valorização da virgindade, à fidelidade e no qual, desde cedo, a equação mulher = mãe é inculcada na cabeça da criança do sexo feminino, as reivindicações dos movimentos das mulheres lésbicas trazem questões que lhes são intrínsecas e que correm o risco de passarem despercebidas nas abordagens feministas ou mesmo nas LGBT. Questões estas que, a meu ver, ainda não foram devidamente debatidas.
Finalmente, não podemos nos esquecer que ao centrar o debate na sexualidade - feminina, masculina ou bissexual em suas inúmeras vertentes - a verdadeira questão é evitada, a saber: o sexual, no ser humano, escapa a toda forma de apreensão direta, não podendo jamais ser controlado. E os discursos sobre a sexualidade são, em última análise, artefatos culturais criados para tentar lidar com o mistério do sexual. A ordem discursiva jamais dará conta do enigma do sexual, cujas manifestações são provas irrefutáveis que não somos senhores em nossa própria casa. Não é sem razão que as produções do inconsciente são muitas vezes sentidas, tanto pelo sujeito quanto pela cultura, como da ordem do estranho (Unheimlich) (Freud, 1919).
Paulo Roberto Ceccarelli
Professor na Universidade Católica de Minas Gerais - BRASIL
paulocrbh@mac.com
http://www.ceccarelli.psc.br/ "
Quem seria eu para me atrever a discordar das reflexões de Paulo Ceccarelli, especialmente por se tratar de uma questão que, querendo ou não, me foge, além do domínio, também a vivência e plena compreensão.
No entanto, não posso deixar de fazer um parêntesis as impecáveis reflexões. No meu sentir, apesar de reconhecer a dominação masculina e o fardo do arquétipo feminino, conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, compartilhado por toda a humanidade, muitas vezes existe uma aceitação da sociedade em relação as lésbicas muito superior aos homens homossexuais.
O casal de lésbicas, até porque a relação de afeto é mais explícito e estável, me parece possuir maior reconhecimento. Até porque talvez possuam mesmos tais características mais claras.
Não só neste aspecto, também em relação a adoção. Ouvi um tipo de debate na rádio CBN onde o discurso girava em torno da adoção por casais homossexuais, onde os comentários e conclusões eram francamente favoráveis as lésbicas, as vezes, talvez pela idealização do papel da maternidade, mesmo a frente de casais heterossexuais, entretanto, os homens homossexuais foram, direta e indiretamente, rechaçados. O que considerei, particularmente, um preconceito.
Por fim, a demonstração de afeto público (mesmo a 'bitoca') e o ato sexual entre dois homens ainda é visto por heterossexuais com repugnância e desconforto. Pode ser puro engano meu, mas não é a reação que percebo em relação as lésbicas, ainda que a dita dominação do macho seja a justificativa. Pelo oposto, faz parte da fantasia masculina heterossexual o desejo de estar entre duas lésbicas e até mesmo de muitas mulheres. Em se tratando de dois homens homossexuais, não só os héteros homens como as mulheres, apenas sentem aversão.
Apesar de entender o ponto de vista colocado e considerá-lo irretócavel em quase todos os aspectos, não consegui como homem homossexual deixar de fazer estes comentários. Penso que, por todos os motivos muito bem detalhados por Ceccarelli, as lésbicas passam por situações traumáticas e de maior sofrimento que o gay, mas não me parece que se trate, como ele afirma, que as relações homossexuais masculinas sejam mais aceitas que as femininas.
Mas quando li a matéria do Paulo Ceccarelli o tempo todo só me recordava de algumas reuniões nas quais estive presente, onde as falas das lésbicas eram exatamente as mesmas contidas no artigo em questão. Isto, por si só, acaba sendo um convite a reflexão, particularmente, para mim.
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